quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Getsêmani

 
 
Despertei ao teu toque, assustado e confuso. Ergui os olhos até parar no teu sorriso, mas ali não encontrei conforto. As coisas que você me disse no dia anterior, eu poderia interpretar de várias maneiras, escolhi, no entanto, a mais lógica. E aquilo me estilhaçou. De repente, a gentileza transformou-se em ferrão, e o encanto, escárnio.
 
Por um segundo, eu nem sabia onde estava. Muito distante de casa. Tentei me levantar, mas senti as pernas fracas e as costelas fraturadas. Então, não tive reação. Cedi ao cansaço, humilhado por aquelas palavras insípidas, ardilosas, brutais em seu significado, cáusticas em sua intenção, que me queimava a garganta e as entranhas. Já faz tempo que deixei de acordar sorrindo. Mas o frio de me sentir tão só no mundo, naquela hora, tornou-se insuportável.
 
Senti vergonha por acordar feliz com o teu afeto. Lembrei de uma noite chuvosa, da qual eu buscava abrigo. Vi santuários pelo caminho onde se aqueciam homens com o calor do fogo de um desejo que me é familiar, embora eu nunca o tenha, de fato, experimentado. Quando é que fui acolhido, afinal? Eu deveria saber que já nasci condenado, e nunca mais me sentir feliz de novo.
 
Nunca me imaginei tão só, mas eu deveria saber, afinal, sozinho, entreguei minh'alma, quando disse sim ao pacto dissimulado. Ingênuo, Eu quis experimentar a emoção do desespero, mas negligenciei que a agonia se tornaria minha própria existência a partir de então. Deixei-me levar pelas vozes sedutoras em minha cabeça, sussurrando canções de lamento que partiram meu coração. Lentamente, fui me tornando cada dia mais ridículo aos olhos de todos e mesmo diante de mim.
 
Corro os dedos pelo rosto enrugado do tempo. O escarlate tinge o canvas e vai se perdendo para além de suas bordas de ilusão. Ventos chamam meu nome, ouço sem ânimo. A terra reclama meus ossos. Minhas mãos estão machucadas, meu orgulho jamais encontrou o que procurava. Eu queria tanto que isso acabasse de outra forma, como outrora, quando recolhia cacos de suspiro deixados nas areias de um poema musicado pela inocência de adolescentes que amaram em segredo.
 
Como se houvesse opção, eu abraço cinicamente esse fardo outra vez. Tarde demais para demostrar qualquer arrependimento, ou propor barganha. Assino com sangue a sentença e deixo-me cair nas profundezas em que arde um nada sem fim. Resta-me a certeza de que fiz tudo por amor.

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Dourada

 
 
Ofuscou minha visão, a luz de quando aquelas portas se abriram. Meus dedos podiam tocar, embora não fossem matéria, as costas nuas de uma canção antiga, cujo hálito acalentava minha desorientação. Trazia sobre um prato o meu passado, enquanto apontava para a escuridão onde estava o meu futuro: nasci não para possuir, mas para saber somente. É um fardo que me é entregue em noites de desassossego, sobre as quais reinam ventos que assoviam e os lobos de choro mais sentido, e cujos arrebóis que as encerram sangram sobre pequenos pedaços de querer espatifados ao se atirar do cume rarefeito de algum pensamento sóbrio.
 
Subindo vagarosamente pela pele eriçada, por toda a extensão concupiscente daquele tecido de carne tramado em neon, até a nuca, que mordiscava meu desejo, e de onde pendia até os seios um dourado de chave, que ela usou para destrancar o segredo: que eu nunca estive só, e que a ela, sempre pertenci. Só que, a gente, para acreditar, precisa se desvencilhar dessa coisa inebriante que é a lucidez. Poentes incríveis explodem para vazios desabitados, tão fascinantes quanto as pequenas mentiras que escolhemos todos os dias para nos enganar a nós mesmos.
 
Tem horas em que eu digo: "meu Deus, eu estou partido ao meio". Mas, ei, esse sou eu tentando preservar aquela criança assustada que se esconde em minhas risadas, enquanto que o adulto maduro já percebeu que o calvário sensorial sufoca, mas não cala um coração que canta sem motivo. Para alguns é a única forma possível de existência, porque nunca se rejeita a vida. Pois, no inconsciente, todo mundo deseja crer na ilusão, todo mundo quer gritar por socorro e inalar de novo esperança.
 
Vida, a gente implora, a gente rasteja, a gente crava as unhas no vapor e rasga cada molécula de oxigênio para continuar existindo, porque, no fundo, se sabe que nada disso é sobre a vergonha de ter ficado nu, mas sim, sobre a petulância de sustentar no rosto um sorriso triunfante de deboche.

No íntimo, todos querem concordar que não se trata da desumanizante indiferença que flagela, mas sim, da audácia que coroa: desafiar a percepção vulgar e entender que no lado selvagem do espelho, existe, também, uma verdade, não precisamente aquela mesma que gostaríamos que existisse, mas a versão que foi possível: real, mas que habita vales inacessíveis de solidão.
 
Até que a canção para de ser sussurrada, olhos ainda embevecidos se abrem uma vez mais para a embriaguez a que chamamos de realidade. É possível flagrar uma ou outra sensação mais distraída ainda pairando no ar. Às vezes, do que se fez, ficam marcas. Muita coisa se perde. Mas certamente nada nunca mais será o mesmo. Vida que se renovou.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Wounded Birds



Por trás do sorriso que encanta multidões, eu enxergo dor. Por trás do rosto pálido, que estampa calendários, eu escuto o grito de socorro. Mas você não vai deixar eu me aproximar, passarinho. Você não vai confiar. Vai se assustar e voar.
 
Talvez o meu jeito desengonçado ponha tudo a perder, ou talvez, eu nunca tenha tido a menor chance. Talvez seja a minha condenação enxergar o que não me é dado a curar. Talvez haja uma explicação para o fato de que eu consigo lembrar o movimento que a tua barriga nua fazia ao respirar.
 
Talvez o teu riso seja o sol que eu nunca vou alcançar. Talvez os teus lábios sejam o alimento pelo qual eu serei eternamente faminto. Talvez a paz que tu me trarias seja a guerra da qual eu jamais sairei com vida. Talvez o sonho revelado por tuas mãos em concha seja o pesadelo do qual eu não posso acordar.
 
Mas eu só te vejo passarinho: machucada em sua risonha inocência, violada em sua gentil confiança. Quisera eu te puxar para pertinho do meu calor e curar onde te mais dói, mas você voou, passarinho, e eu fiquei só. Que bom que foi para longe de mim.